Nesta cápsula inicial, fazemos uma primeira aproximação a conceitos fundamentais da mecânica quântica, como a interpretação de Copenhagen, realizando uma crítica filosófica materialista à sua visão idealista. Comentamos também algum dos seus princípios elementais, como o princípio de incerteza de Heisenberg, a não-localidade, a natureza probabilística da teoria, a crítica determinista que realizou Einstein, a tese alternativa de David Bohm e analisamos a diferença das diferentes propostas desde perspetivas materialistas e idealistas.
A mecânica quântica é reconhecida pola comunidade científica como uma das teorias mais poderosas e precisas da física moderna. No entanto, apesar de seu êxito na previsão de fenômenos no nível subatômico, continua apresentando sérios desafios quanto à sua interpretação filosófica e conceitual. Neste texto, pretendemos fazer apenas uma análise filosófica breve do que a teoria realmente nos quer dizer sobre a realidade.
Podemos agrupar interpretações filosóficas da mecânica quântica em duas abordagens principais: a primeira, de carácter materialista, sustenta que a teoria reflete uma realidade física objetiva, independentemente do observador; a segunda, de carácter idealista, que a mecânica quântica é simplesmente uma ferramenta para descrever e prever o comportamento da natureza, sem fazer afirmações diretas sobre o que “é” a realidade. Esta última abordagem sugere que, embora não se chegue a negar que a realidade exista objetivamente (o marco extremo da filosofia do idealismo subjetivo do bispo Berkeley), não temos como humanos a capacidade de conhece-la, estamos limitados e não podemos “chegar” à realidade última. Seria esta, portanto, uma perspectiva kantiana, que reabilita o conceito de noumeno, a “cousa em si”, que resulta inatingível para os seres humanos e as possibilidades do seu aparato cognitivo.
O debate filosófico concreto tem-se centrado historicamente em três problemas fundamentais. O primeiro é a questão da completude da teoria quântica: será esta teoria completa no sentido de que descreve todos os aspetos da realidade, ou existem variáveis ocultas que ainda não compreendemos? O segundo é o problema da medição, que examina como e porquê o ato de medir parece influenciar o estado de um sistema quântico. O terceiro problema tem a ver com as diferenças nas medidas realizadas por diferentes observadores, um ponto que se tornou o centro de paradoxos como o do “amigo de Wigner”.
Desde os primeiros dias da mecânica quântica, foram propostas diferentes interpretações. É destacável, para estudarmos aqui, a conhecida como interpretação de Copenhagen, promovida principalmente polos cientistas Niels Bohr (1885-1962) e Werner Heisenberg (1901-1976), que procura explicar como entender o comportamento de partículas subatômicas descrito pelas equações da mecânica quântica.
Aqui estão os pontos principais da interpretação de Copenhagen:
- Dualidade onda-partícula: Partículas quânticas, como elétrons e fótons, podem comportar-se como partículas ou como ondas, dependendo do experimento realizado. Não faz sentido dizer que são “apenas” uma cousa ou outra antes da medição.
- Função de onda e probabilidade: O estado de um sistema quântico é descrito por uma função de onda (ψ), que contém todas as informações sobre o sistema. A função de onda não descreve diretamente a realidade física, mas as probabilidades de diferentes resultados de medições.
- Colapso da função de onda: Antes de uma medição, um sistema quântico existe em uma superposição de estados possíveis. Após a medição, a função de onda “colapsa” para um dos estados possíveis, e o resultado da medição é observado. Esse colapso é instantâneo e depende da interação com o aparelho de medição.
- Princípio da complementaridade: Niels Bohr argumentou que certos pares de propriedades (como posição e momento) não podem ser completamente conhecidos ou medidas ao mesmo tempo.
- Isso reflete o princípio da incerteza de Heisenberg e a ideia de que a natureza quântica é fundamentalmente probabilística.
- Não há realidade independente da observação: Na interpretação de Copenhagen, a realidade física não é definida de forma objetiva antes da medição. O ato de medir desempenha um papel central no comportamento de sistemas quânticos.
Centremo-nos agora no Princípio de incerteza de Heisenberg. Este princípio afirma que resulta impossível determinar simultaneamente, com precisão absoluta, a posição e o momento linear (o produto da massa pola velocidade) de uma partícula. Quanto mais precisamente medimos uma dessas variáveis, maior será a incerteza na outra.
Na interpretação de Copenhagen, essa incerteza é vista como uma característica fundamental da realidade quântica, não apenas como uma limitação do nosso conhecimento, ou uma limitação instrumental, mas uma propriedade intrínseca do mundo físico, como se indicou no ponto 6. Para Niels Bohr e outros defensores desta interpretação, o ato de medir altera o sistema quântico, leva ao colapso da função de onda, e desta circunstância derivam estes cientistas a que consideramos uma interpretação filosófica idealista: essa incerteza reflete a natureza indeterminada da realidade antes da medição, em outras palavras, sugere que, antes da medição, a realidade não está completamente determinada ou definida.
Do nosso ponto de vista materialista, esta é uma abordagem indeterminista e “subjetivista”, ou no mínimo de caracter instrumentalista. O instrumentalismo, no contexto filosófico, é uma teoria epistemológica, filha direta do subjetivismo, que vê as teorias científicas apenas como ferramentas ou instrumentos para prever e organizar fenômenos observáveis, em vez de descrevé-los literalmente ou representar a realidade última. De acordo com o instrumentalismo, o valor de uma teoria está unicamente na sua utilidade prática e capacidade de prever resultados experimentais, mas não na sua veracidade ou correspondência com a realidade objetiva. O próprio Lenin, na sua obra Materialismo e empiriocriticismo (1914), denuncia o parentesco direto com o idealismo subjetivo e o positivismo que tem o instrumentalismo, fazendo crítica furibunda a este agnosticismo científico propugnado na altura por cientistas como Ernst Mach e Richard Avenarius, cuja perspetiva filosófica começava a penetrar na classe trabalhadora, por exemplo em mencheviques como Aleksander Bogdanov. Como temos dito em outras cápsulas, a incapacidade de explicar a realidade como ela é, o fomento do agnosticismo, resulta funcional à burguesia pois debilita nos trabalhadores a capacidade de comprender e transformar a realidade pola via prática revolucionária. O que não se pode chegar a comprender, não pode ser realmente mudado.
Albert Einstein (1879-1955) discordava desta visão idealista e indeterminista, e tratou de defender o determinismo. Ele via essa incerteza ou indeterminação como uma limitação do conhecimento, e não da realidade em si. Acreditava que a mecânica quântica estava incompleta, sustentando que existiam variáveis ocultas (ainda não descobertas) que poderiam fornecer uma explicação determinista dos fenômenos, sem a necessidade de dar um salto desde a incerteza epistemológica para o ontológico na indeterminação da realidade. A sua famosa frase, “Deus não joga aos dados com o universo”, indicava que a natureza deveria ter um comportamento determinista ainda desconhecido para nós.
Posteriormente chegariam os experimentos do cientista irlandês John S. Bell (1928-1990) e os seus sucessores, que refutam a teoria das variáveis locais ocultas, sugerindo que a não-localidade é uma característica fundamental da realidade quântica. No entanto, desde uma visão materialista dialética, o determinismo ainda poderia ser possível no futuro, através de uma explicação mais completa dos fenômenos quânticos, sem abandonar a perspetiva ontológica realista. Novos avanços poderiam fornecer bases para revisitar essas questões com uma visão determinista, sem apelar ao idealismo da interpretação de Copenhagen.
Como dissemos, a interpretação de Copenhagen defende que o princípio de incerteza reflete a forma como a natureza se apresenta no regime quântico. A incerteza quântica seria mais do que uma limitação epistemológica (do nosso conhecimento), sendo na verdade uma característica ontológica (da realidade em si). Esta interpretação está a dar um “salto idealista” do epistemológico (a nossa percepção da realidade) para o ontológico (o que a realidade é). Como opinam os cientistas marxistas Alan Woods e Ted Grant no livro Razão e Revolução1: “A dificuldade, na hora de estabelecer com precisão a posição e velocidade duma partícula que se move a 8.000 quilómetros por segundo, em diferentes direções é obvia. Porém, tirar a conclusão a partir desse razoamento, de que causa e efeito (causalidade) em geral não existem, é uma proposição completamente errada“.
Por outro lado, a Interpretação de Copenhagen assume que a função de onda representa uma realidade fundamentalmente probabilística, algo que, duma perspetiva materialista dialética sim podemos e devemos compartir, como veremos mais adiante, e não contradiz uma visão materialista da realidade. O que sim não podemos defender é a afirmação de que quando não medimos um sistema, ele não tem propriedades definidas; que ao colapsar a função de onda, é como se a realidade só se “concretizasse” no momento da observação. Esta visão incorre num desvio claramente idealista, no sentido de que faz da observação (algo mental e consciente do sujeito) uma peça central na determinação da realidade. A realidade material existe, com independência do sujeito humano que a observa ou a mede.
Novamente, Woods e Grant indicam: “Este é um ponto de vista completamente diferente ao que adoptava a ciência no passado ao se confrontar com problemas relacionados com flutuações irregulares e o movimento casual. Ninguém imagina que seja possível predizer o movimento exacto duma molécula num gas ou todos os detalhes dum accidente de carro em concreto. Mas nunca antes se fizera um intento sério de deduzir destes factos a não existência da causalidade em geral.”
Esta é precisamente a conclusão que nos convida a tirar o princípio de incerteza: cientistas e filósofos idealistas tratam de colocar a ideia de que a causalidade em geral não existe. Quer dizer, que não existem causa e efeito. O universo seria imprevisível e a natureza parece um assunto casual, assume-se que em qualquer experimento concreto, o resultado concreto que se obtiver é completamente arbitrário, que não tem nenhum tipo de relação com nenhuma outra cousa que exista no mundo. Isto é claramente idealismo, é negar a ciência e mesmo o pensamento racional em geral. Se não há causa e efeito, não só não é possível predizer nada, mas também não podemos explicar nada, e temos de nos limitar só a descrever, unicamente descrever, o que é. E de aqui vamos de cabeça cara o idealismo subjetivo: já não podemos estar certos de que realmente exista algo fora de nós e dos nossos sentidos. E vamos também diretos ao sofista grego Gorgias (483-375 antes da nossa era) quando afirmava o conhecido axioma relativista e escéptico: “Não podo conhecer nada sobre o mundo. Se pudesse conhecer, não poderia comprendé-lo. Se pudesse comprendé-lo não o poderia comunicar“
Contudo, é importante sublinhar que Bohr não sugeria que a mente cria-se a realidade, mas sim que o próprio ato de medição, uma interação física, define o estado do sistema quântico. Em qualquer caso, Niels Bohr sim chegaria a afirmar que “é incorreto pensar que a tarefa da física é descobrir como é a natureza. A física preocupa-se apenas do que podemos dizer sobre a natureza“.
Com afirmações como esta, os defensores da Interpretação de Copenhagen confundem uma limitação no nosso conhecimento (epistemológica) com uma limitação da realidade (ontológica).
Não devemos negar as enormes contribuições de Heisenberg ou de Bohr à física, mas sim as conclusões filosóficas que tiraram sobre a mecânica quântica. Mantêm opiniões filosóficas que refletem um determinado ponto de vista idealista e burguês do mundo. Devemos indicar que importantes cientistas se opuseram a este subjetivismo, entre eles o próprio Einstein, Max Planck, Louis de Broglie e Erwin Schrödinger, que jogaram papéis tão importantes na física como eles.
Para Einstein, a incerteza era uma falha na nossa descrição do mundo, não uma propriedade fundamental do universo. Ele acreditava que deveria haver variáveis ocultas (deterministas) que, uma vez conhecidas, explicariam completamente o comportamento das partículas.
Os experimentos de Bell, junto com as desigualdades de Bell, foram cruciais para mostrar que não existem variáveis ocultas locais que podam completar a mecânica quântica de forma compatível com os resultados experimentais. O que isto significa é que qualquer teoria que tente restaurar o determinismo tem que ser não-local, isto é, permitir que influências se propaguem instantaneamente (ou mais rápido que a luz) entre partículas distantes.
É aqui que as visões de Einstein encontram dificuldades. Einstein rejeitava não apenas a interpretação de Copenhagen, mas também a noção de não-localidade, pois isso parecia violar a relatividade especial, que proíbe qualquer forma de comunicação ou influência a uma velocidade superior à da luz.
No entanto, existe ainda espaço para interpretações deterministas, como a interpretação de David Bohm (1917-1992), que, embora seja não-local, trata de manter o determinismo ao introduzir a ideia de uma “onda-piloto” que guia as partículas de forma não-probabilística.
O fato de os experimentos até agora apontarem para a não-localidade como um aspeto fundamental do universo coloca obstáculos sérios a qualquer tentativa de resgatar uma visão puramente local e determinista da realidade. Isso não significa que o determinismo esteja completamente descartado, mas qualquer teoria futura terá de lidar com as implicações profundas da não-localidade quântica.
Resumimos finalmente aqui, brevemente, alguns dos elementos e princípios arredor da mecânica quântica que temos analisado filosoficamente, e apontamos algum outro para ver em próximas cápsulas:
1. Princípio de incompletude da mecânica quântica: a mecânica quântica, como está atualmente, pode ser considerada incompleta no sentido einsteiniano, mas não podemos ignorar o seu sucesso esmagador na previsão de fenômenos experimentais. Qualquer teoria que a substitua ou complemente terá que reproduzir esses resultados e explicar a não-localidade.
2. Determinismo: A noção de determinismo para ser restaurada no futuro é, por enquanto, especulativa, especialmente dentro do paradigma atual, que se apoia em experimentos que sugerem que a natureza é fundamentalmente probabilística e não-local. No entanto, a interpretação de Bohm (determinista e não-local) oferece um caminho possível, ainda que tenha problemas filosóficos e empíricos próprios.
3. Natureza probabilística da teoria quântica: Sim, a teoria quântica é probabilística. Quando lidamos com sistemas quânticos, as previsões feitas são geralmente sobre probabilidades de resultados possíveis, e não sobre resultados determinísticos. A função de onda, que descreve o estado de um sistema quântico, evolui de forma determinística segundo a equação de Schrödinger, mas ao medir uma propriedade (como a posição ou o momento de uma partícula), o resultado só pode ser conhecido probabilisticamente, até o ato de medição colapsar a função de onda para um dos possíveis resultados.
4. Entrelaçamento quântico: ou “emaranhamento”, polo qual duas (ou mais) partículas ficam ligadas de tal forma que as suas propriedades estão correlacionadas, independentemente da distância que as separa. Esta correlação implica que, ao medir o estado de uma partícula, o estado da outra se torna instantaneamente conhecido. Esta é uma correlação sem troca de matéria, energia ou informação. O entrelaçamento quântico não envolve uma troca física de matéria, energia ou informação entre as partículas no momento da medição. Ou seja, não há uma comunicação ou “sinal” entre as partículas que transporte energia ou informação de uma para a outra no sentido clássico. Em vez disso, o entrelaçamento gera uma correlação estatística que parece “instantânea”, mesmo a grandes distâncias (um fenômeno conhecido como não-localidade). Essa correlação foi confirmada por experimentos que testaram as desigualdades de Bell, mostrando que as medições são correlacionadas de uma forma que não pode ser explicada por variáveis ocultas locais. Toda teoria que procure voltar ao determinismo no futuro, terá que partir dessa não existência de variáveis ocultas locais, como ainda pensava Einstein.
5. Não existe transmissão de informação mais rápida que a luz: É importante destacar que, embora haja correlação entre as partículas entrelaçadas, essa correlação não pode ser usada para transmitir informação mais rápida que a luz. Qualquer tentativa de usar entrelaçamento para comunicação esbarraria na impossibilidade de controlar o resultado de uma medição de forma a codificar informações úteis.
Portanto, e para concluir:
– A teoria quântica é probabilística, tanto no comportamento das partículas individuais quanto no fenômeno do entrelaçamento.
– No entrelaçamento, a correlação entre as partículas é não-local, mas não envolve transmissão física de energia, matéria ou informação.
– As medições entre as partículas entrelaçadas estão correlacionadas, mas essa correlação não pode ser usada para transmitir informação de forma mais rápida que a luz, preservando assim os princípios da relatividade.
- Reason in Revolt – Marxist Phylosophy and Modern Science. (1991) Alan Woods and Ted Grant. Capítulo 6. Indeterminação e Idealismo. ↩︎
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