Esta é uma crítica desde a dialética materialista de classes ao filme de Ruben Östlund, Triângulo da Tristeza, Palma de Ouro em Cannes, que ajuda a desvendar esta luita de contrários entre a burguesia e o proletariado de forma muito original. Acompanham-se as cenas do filme com uma interpretação de proveito para a nossa perspetiva como classe trabalhadora.
E se o proletariado se apoderasse dos meios de produção? O triângulo da tristeza, uma engenhosa sátira da que sentiria orgulho Karl Marx
O grande diretor sueco Ruben Östlund, depois dos magníficos The Square e Força Maior, volta colocar, de forma magistral e hábil, grandes dilemas morais e políticos na mente do espetador, que ficam na sua retina durante muito tempo. É o caso deste triângulo da tristeza, um filme que vamos analisar porque com certeza Karl Marx e Friedrich Engels teriam gostado muito, sobretudo polo seu terceiro ato na ilha, onde penso que são apresentadas, entre outras, as seguintes teses:
(a partir de aqui temos spoilers, polo que recomendamos primeiro o seu visionado a todas as camaradas):
– O capitalismo, apesar dos seus excessos, não acaba por si só pela ação da natureza. A tempestade, o navio virando, a grande crise (aqui uma crise muito engraçada, escatológica e grotesca) simbolizam um colapso, mas, apesar de tudo, o navio – o status quo burguês – mantém-se de pé. Os magnatas sofrem apenas vómitos e a morte ocasional provocada polos seus próprios atos em vida (destino hilariante e mordaz do aparentemente simpático casal de velhos britânicos que enriqueceu com o “nobre negócio” de fabricar bombas para “manter a sua democracia”).
Aprendemos assim, que não é um colapso natural o que derrota o sistema, mas um ataque revolucionário (a barca que os ataca com explosivos).
– Uma vez na ilha, a classe burguesa perde a propriedade dos meios de produção e, com ela, o seu estatuto e posição de classe dominante. Além disso, não sabe trabalhar; o falso pretexto da meritocracia e do esforço é espido aos nossos olhos como suposto fundamento da sua situação social e da sua acumulação de capital e de riqueza.
A partir desse momento, quem impõe o seu domínio na ilha, um novo cenário de igualdade, é o proletariado, que trabalhou toda a vida, papel desempenhado pela grande Dolly de Leon, atriz que interpreta Abigail, uma filipina limpadora do barco e quem por ter tido de trabalhar muito, sabe pescar e cozinhar (agora controla os meios de produção, e fá-lo por mérito, pois domina a técnica).
Os oligarcas não sabem fazer nada, só sabem mandar. Grande é a paródia da sua única ação de caça na ilha, abatendo pateticamente o animal mais pacífico, nobre e explorado pelos seres humanos: uma burra (grande escolha simbólica), com homenagem ao “grande caçador” e à sua pintura rupestre, uma nova ironia sobre a justificação burguesa da sua posição histórica graças ao seu esforço.
– Nesta nova situação, o proletariado ordena, os que antes mandavam agora obedecem, o medo mudou de bando.
E agora são os burgueses os que são obrigados a prostituir-se para comer (Carl no Love Boat).
Curioso é também o papel de Vicki Berlin, Paula, diretora dos trabalhadores do barco, que assume o papel de gerente em representação do proprietário, e que, uma vez naufragados na ilha, sem barco nem burguesia, pretende manter a ordem como se nada tivesse acontecido, manter a hierarquia, sem base material que a justifique.
Östlund revela que são as condições materiais as que determinam o grau da nossa liberdade, que é a economia e o domínio de uma classe sobre os meios de produção o que molda as relações sociais.
De nada serve o propósito de Carl com Yaya, no primeiro ato do filme, de querer libertar-se das convenções sociais (por exemplo, o role de género de Carl ao pagar o jantar). Quando a razão da sua posição social é desvendada e eles perdem os seus privilégios com o naufrágio, é Carl que não duvida em usar a sua beleza para conseguir comida.
– O final é chave: quando Abigail se achega para matar Yaya com uma pedra para não voltar à situação anterior, pois descobrem um resort na ilha e que as relações sociais do capitalismo vão ser restabelecidas, poder-se-ia erradamente ver uma mensagem liberal de que, no fim de contas, os seres humanos são egoístas por natureza e defendem os seus próprios interesses de todas as formas possíveis. No entanto, há grandes nuances transformadoras na cena: quando Abigail se aproxima sigilosamente a ela com a intenção de a matar, Yaya reflete e, numa primeira frase, parece querer eliminar a situação anterior ao naufrágio, que Abigail não volte a ser submetida novamente (a burguesia teria aprendido, empatizado e aceitaria a abolição das classes), nesse momento Abigail tem pena, muda de cara… Será que a burguesia aprendeu a lição? Estará pronta para passar do socialismo ao comunismo, a uma sociedade mais justa e sem classes?
Um segundo depois, Yaya desilude-nos: “Poderíamos arranja-lo, poderias trabalhar para mim”.
Ela não aprendeu nada, o seu desejo é tornar a explorá-la de novo.
Abigail dá o golpe final.