Neste artigo vamos analisar alguns dos problemas das éticas utilitaristas desenvolvidas pola burguesia do século XIX com autores como Jeremy Bentham ou John Stuart Mill, e que ainda resultam de inspiração para a ideologia liberal actual. Realizaremos várias críticas desde o seu próprio marco burgués mas referenciando-as à evidente abstração idealista que realizam da sociedade burguesa desde a nossa perspetiva materialista dialetica e histórica.
A ética utilitarista, postulada originalmente polos filósofos liberais Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), defende que um ato é bom e desejável quando procura a maior felicidade para o maior número de pessoas.
A utilidade liga-se diretamente à felicidade e ésta identifica-se com a nossa tendencia natural à obtenção de prazer e a evitação da dor. Seria uma procura de prazer no presente e também no futuro, pois fazer um cálculo do prazer que poderemos obter (hedonismo do futuro), é o que guía racionalmente a nossa conducta e ademais é assim como moralmente deve ser* se nos conducimos baixo esta ética utilitarista.
O feito de que a utilidade constitúa o fim último da ação humana, fai que desde sempre tenha sido o utilitarismo uma ética de referência para as doutrinas liberais e para a classe burguesa, pois encaixa como uma luva com a tese da ação racional do indivíduo no mercado, que atua sempre procurando maximizar o seu próprio benefício minimizando as perdas e que operando deste jeito termina beneficiando a toda a sociedade. Justifica-se assim o fomento da iniciativa privada, o impulso do livre mercado, a teoría subjetiva (utilidade pessoal) do valor das mercadorías (por contraposição à teoría do valor-trabalho de Marx) e consequentemente se justifica o modo de produção capitalista.
Seria a plasmação teórica da conhecida sentença de Adam Smith (1723-1790) de que “não é pola benevolencia do padeiro que temos pão todos os dias senão pola procura dele do seu própio interesse”, ou da ‘Fábula das abelhas: os vícios privados derivam em benefícios públicos’, de Bernard de Mandeville (1670-1733). Seriam pois, segundo eles, os interesses egoístas os que terminariam provocando o benefício social.
Voltando à identificação da utilidade com a felicidade, incluso Bentham defendeu que era possível fazer empíricamente um “cálculo felicífico”, medir a felicidade com um algoritmo, e do mesmo jeito que medimos tal felicidade, muitos liberais defendem que podemos também medir as nossas preferências e o valor das cousas no mercado através da compra e da venda. Os preços, os valores de câmbio, que aparecem “mágicamente” na troca seriam um medidor do valor subjetivo e da utilidade que as pessoas encontram nos bens e serviços intercambiados no mercado, e a medida dessa utilidade seria precisamente desvelada nesse acto.
No entanto, a medição numérica da utilidade, igual do que a medição em si da felicidade, do carinho, da ira ou da beleza resultam impossíveis. O mesmo Ludwig Von Mises, autor paradigmático do neoliberalismo mais selvagem, tivo que reconhecer na sua obra ‘A Ação Humana’ (1949) que “polo mesmo que non cabe ponderar nem medir a atração sexual, a amizade, a simpatia ou o prazer estético, tampouco resulta possível calcular numericamente o valor dos bens.”.
Quantificar numericamente emoções, sensações ou sentimentos que entram no ámbito do moral, o prazer ou disprazer, não parece que resulte possível.
E mesmo no suposto de poder fazer tal cálculo, encontraríamos certos problemas:
Como é que se poderia aplicar a ética utilitarista na prática? Como é que se pode calcular em escasos segundos prévios a uma ação as consequências da mesma para tomar a decisão mais “racional”? E ademais, como é que se podem ponderar ou estimar as consequências globais e sociais duma ação individual particular nossa (se o objetivo é a maior felicidade do maior número)?
Outros problemas que aparecem com a posta em prática da ética utilitarista recaem precisamente na ideia de que esta máxima de ‘a maior felicidade’ para ‘o maior número de pessoas’ são em realidade dous principios separados, e o seu uso conjunto implica contradições: o que se deveria escolher entre a) um ato que traz muita felicidade para uma quantidade menor de pessoas ou b) um ato que traz uma felicidade moderada para um número maior de pessoas? Qual conduta escolher?
Igualmente, segundo a ética utilitarista, podemo-nos encontrar com perversidades como esta: sacrificar um inocente para beneficiar a uma imensa maioria de pessoas que clama vingança para acalmar os seus desejos teria que ser um ato moralmente defendível. Ou em sentido contrário, ocultar com uma grande mentira um ato abjecto contra poucas pessoas para manter na ignorancia feliz à maioria, seria defendível: as autoridades eclesiásticas deveriam ocultar os casos de abusos de bispos a menores para evitar o sofrimento da imensa maioria de fieis cristãos, muito maiores em número do que as vítimas abusadas?
Além de todo isto, os liberais teriam um problema grave com o utilitarismo para o fazer casar com a acumulação de riquezas: uma grande fortuna nas mãos dum único proprietário em lugar de ser repartida entre milhões de individuos… não estaría a restar a felicidade maior dum maior número de pessoas? Não seria moralmente mais aceitável obrigar a esse indivíduo a repartir para conseguir a maior felicidade para o maior número?
Por último, é interesante também indicar que, à hora de valorar as consequências duma ação, podemos ser vítimas dum sesgo de resultado, pois pode que os resultados duma ação sejam só derivados do azar e não o produto necesario dunha causa ou conjunto de causas repetíveis e racionalizáveis. Até um chimpanze entre um milhão de chimpazés jogando em Bolsa através dum computador seria capaz de tirar algum benefício após uma série de actos de investimento, e não por isso pensaríamos que o chimpanzé opera de forma racional e que o resultado é consequência das suas escolhas.
Muito a pesar de todas estas contradições e problemáticas, as éticas utilitaristas, como éticas consequencialistas (que medem a qualidade moral dos atos em função das consequências dos mesmos) continuam sendo fortemente defendidas pola classe burguesa.
Finalmente, e no entanto todo o anterior, é justo assinalar que a ética utilitarista tal e como foi defendida na altura por Bentham e Mill, sim tinha aspectos muito desejáveis e muito aproveitáveis por nós na atualidade, como por exemplo 1) um incipiente antiespecismo (considerar já o resto de especies animais também como pacientes morais pola sua capacidade de sentir prazer e disprazer), 2) a preocupação polas gerações futuras para fazer esse cálculo da utilidade -e não só para os individuos do presente- ou também 3) a inclusão do altruismo como um dos motivos para a ação humana: um indivíduo pode perseguir o seu próprio interesse mas esse interesse bem pode ser a felicidade dos demais, e não só exclusivamente a própria. De facto, Bentham considerava uma tautologia a ideia de “o indivíduo atuar perseguindo o seu próprio interesse” (pois sempre atuamos perseguindo o próprio interesse, mesmo quando esse interesse é procurar o bem das demais pessoas).
O que não tenhem presente os liberais é que a sociedade, no modo de produção capitalista, está dividida e responde à dialética de classes antagónicas entre os proprietários e os não proprietários dos meios de produção, e que “procurar a felicidade para o maior número possível de pessoas” bate sempre contra o muro imposto por esta estrutura socio-económica capitalista; a distribuição dos bens que se consideram valiosos para obter felicidade está vedada para as classes exploradas. São portanto estas éticas e a sua interpretação produto duma clara idealização e eternização da sociedade burguesa e da abstração do modo histórico de produção capitalista.
Nota ao primeiro parágrafo (* )Obviaremos aquí a chamada “falácia naturalista”, explicada por David Hume (1711-1776), e da que G.E. Moore (1873-1758) acusou a John Stuart Mill no caso do utilitarismo: confundir o ‘ser’ (o ser humano procura naturalmente a felicidade) com o ‘dever ser’ (o ser humano debe procurar a felicidade), assunto que podería ser também tratado em profundidade.